A história do bairro de Peixinhos, em Olinda, pode ser resumida numa antítese de palavras: durante décadas, até os anos 70, Peixinhos viveu e cresceu em função do comércio da carne-de-boi e de porco. Hoje, no lugar do Matadouro que há tempos já se encontrava em completo abandono, o bairro vê surgir uma nova fonte de atração para a comunidade: o Nascedouro, ponto de concentração para a comunidade artística do local manifestar sua cultura. É de lá que começa basicamente o enredo do livro Peixinhos, um Rio por Onde Navegam um Povo e suas Histórias (Bagaço), de Zuleide de Paula. A obra será lançada hoje à noite como parte da programação da Semana de Cultura de Peixinhos.
Voltada exclusivamente para fatos que moveram o bairro da cidade de Olinda desde quando ele ainda era apenas um engenho de açúcar, esta poderia até ser mais uma publicação bairrista (no sentido literal da palavra). E a publicação seria resumida nesse adjetivo não pesasse no atual cenário de Peixinhos substantivos próprios como Via Sat, Balé Majê Molê, Serpente Negra, Etnia e outros grupos. Todos esses grupos fazem parte da nova geração de artistas locais que tentam, via música, dança, poesia e qualquer outra manifestação artística, mudar o conceito de que a própria periferia faz de si mesma.
Os prédios envelhecidos do Nascedouro servem agora de palco para shows de bandas, peças de teatro, danças populares e exposição de pinturas de artistas locais. A maior parte desses eventos tem renda (muitas vezes alimentos não-perecíveis) destinada aos moradores mais carentes do bairro. O lugar também virou cenário fixo para a expressão do movimento Boca do Lixo, o grupo de unificação dos artistas locais que levanta a bandeira social para divulgar arte.
Escrito com o tom de ingenuidade de uma professora que conta algumas daquelas fantásticas histórias a seus alunos, o livro é, antes de ser um documento histórico, uma prova de que o que se produz hoje entre os becos e ruas da "capital do mundo", segundo a banda Etnia, não pode ser apenas descrito como um movimento sem causa, o resultado de uma involuntária e independente produção cultural. No bairro, todos parecem estar de alguma forma unidos no propósito de soltar a voz e a imagem por todos aqueles que se calam diante da 'Lei do Silêncio' que a violência urbana impõe ao local.
CONTRASTES - No entanto, para quem for olhar a publicação no intuito de ter uma biografia completa de bandas de rock e hip hop, perfil dos artistas plásticos e histórias inéditas de alguns grupos culturais, pode procurar essas informações em outro lugar. Os sete capítulos que compõe o livro não são pretensiosos a esse ponto. Antes de se colocar como escritora, Dona Zuleide, como é conhecida no bairro, é uma moradora que tem suas próprias perspectivas e prioridades.
Os textos tratam desde a visita do presidente Juscelino Kubitschek até algumas notícias policiais que fazem parte da seção Incidente, violências e descasos. Os assuntos e o tamanho reservado para cada um deles ficam a critério da quantidade de entrevistas que a escritora conseguiu com os personagens.
Mesmo abordando os mais variados assuntos, um dos pontos altos do livro, como não poderia deixar de ser, é o capítulo Cultura. Zuleide faz questão de ressaltar que, mesmo em um local mais conhecido pelo seu alto índice de criminalidade e pelo seu lixão, as manifestações culturais também podem virar notícia. Carnaval, pastoril, circo, candomblés, músicos e bandas são assuntos que, muitas vezes, a escritora lembra em saudosismos de quem viu o bairro passar por mais de quatro décadas de transformações. Para retratar todas essas mudanças, a edição do livro usou e abusou de fotos, adquiridas de arquivos pessoais dos moradores.
Entre os grupos que se destacam nas páginas do livro está o Balé Majê Molê (em dialeto africano iorubá significa "crianças que brilham"), grupo de dança que trabalha com meninas de nove a sete anos de idade exaltando não apenas o ritmo, como o visual 100% afro. Fundado em 1994, o balé é liderado pelo casal Glória Maria e Gilson, integrantes do grupo Arte Negra de Pernambuco. Assim como o Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças (GCASC), coordenado pela própria Zuleide de Paula, o Majê Molê trabalha com o potencial de crianças e adolescentes que, provavelmente, nunca teriam oportunidade de fazer e mostrar arte não fosse pelo incentivo a grupos culturais que existe em todo o bairro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário